Medicina que respeita princípios

Quando penso qual deve ser o futuro da medicina, penso principalmente no fato de que tem de voltar a respeitar os seus princípios, que dela fazem uma das mais belas e úteis atividades. E isso me lembra dois reconhecidos filósofos que nos apontam tal caminho: Nietzsche, com seu “Eterno retorno”, e Hegel, com a frase “Tudo volta ao que era, só que diferente”.

Comecemos pelo comportamento do médico, que deve se basear numa ética absoluta, evitando qualquer situação que traga conflitos de interesse. Em segundo lugar, a qualidade de sua formação tanto objetiva, conhecedor de todos os campos das ciências médicas, quanto subjetiva, que guie todos os passos de seu raciocínio clínico.

Numa consulta e, principalmente na primeira vinda do paciente a seu consultório, dois são os passos que constroem a qualidade: o estabelecimento de uma relação pessoal entre o médico e o paciente e a evolução de uma anamnese em todas as suas diversas etapas —queixa principal, história da doença atual, história patológica, história familiar, história social.

A essência da medicina foi deturpada por diversas formas, em situações que lucros se sobrepunham aos cuidados. O pensador Noam Chomsky nos mostra isso no título de um de seus livros, “O lucro ou as pessoas”. Outros pensadores nos mostram esses desvios em algumas de suas obras, como Marcia Angell, que foi editora-chefe do New England Journal of Medicine, com “A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos”; Richard Smith, ex-editor-chefe do British Medical Journal, com “The Trouble of Medical Journals”; Howard Barrows, com “Developing Clinical Problem-Solving Skills”; e José Gomes Temporão, nosso ministro da Saúde, com “A propaganda de medicamentos e o mito da saúde”.

Algumas leis que visavam a proteger a medicina estão sendo desconfiguradas, a começar pelo projeto de lei 73 de 1966, que dizia em seu artigo 130 § 2º: “A livre escolha do médico e do hospital é condição obrigatória”, e no artigo 133, “É vedado às Sociedades Seguradoras acumular assistência financeira com assistência médico-hospitalar”. E na Constituição Federal de 1988, o artigo 199 dizia: “§ 1º — As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções &agra ve;s instituições privadas com fins lucrativos. § 3º É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”.

Vemos nessas legislações a proteção dos princípios que regem a medicina, com o afastamento de todos os conflitos éticos que possam levar a benefícios particulares acima dos humanísticos e sociais.

Temos sempre que levar em conta que qualquer progresso nos campos técnicos e da ciência deve ser utilizado para um acréscimo, e nunca um decréscimo, das atividades para onde são direcionados. Sabemos que há males que vêm para o bem e não podemos concordar que agora haja bens que vêm para o mal.

Portanto, o futuro da medicina está nos bons usos, e nunca nos abusos de tudo o que traz contribuições para a atividade médica, como os medicamentos e procedimentos diversos, os trabalhos científicos, os exames complementares, hoje erroneamente chamados de “medicina diagnóstica” (pois a verdadeira medicina diagnóstica está no raciocínio clínico), e os planos de saúde que tentam se tornar os proprietários das atividades médicas de formas variadas e deletérias. Finalmente, importantíssima é a correção do que existe em nossos dias no ensino médico: só um país tem mais escolas médicas que o Brasil. A Índia, com 1,38 bilhão de habitantes, tem 392 escolas, enquanto o Brasil tem 336 para seus 214 milhões de habitantes, a maior parte pensando mais nos seus lucros do que nos seus alunos.

*Presidente do Instituto de Medicina e Cidadania

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